Mas as reformas estruturais não eliminam a relevância da reforma moral, é ponto em que insistimos. São instâncias concomitantes.
A reforma de uma estrutura política, administrativa, religiosa ou educacional, por exemplo, pode ser muito inteligente, como boa base de sustentação, mas o funcionamento vai depender do homem. E se o homem não estiver preparado para conviver com os novos mecanismos, não apenas do ponto de vista intelectual ou técnico, mas também do ponto de vista moral, a melhor estrutura possível corre o risco da poluição, apesar das boas aparências.
Que poderíamos esperar de uma casa muito bem traçada, muito bonita por fora, mas construída com material de péssima qualidade, sem alicerce seguro?
Então, embora as reformas de estruturas sejam necessárias, o equilíbrio social não dispensa a reforma moral de alto a baixo. Não se reformam costumes por leis ou pela força. Por mais bem intencionada e cuidadosa que seja uma lei, não está isenta de acomodações e distorções quando o homem quer usá-la em benefício de seus caprichos ou de conveniências ocultas.
A lei por si só não reforma a sociedade, pois os resíduos da imoralidade e das artimanhas sempre subsistem enquanto o homem, por sua vez, também não se modifica interiormente. Dentro dessa concepção, que está na ordem geral das idéias que até aqui explanamos, naturalmente nos defrontamos com o problema da propriedade.
Como já recordamos, o Espiritismo nos põe diante de uma concepção igualitária quanto aos direitos essenciais da criatura humana. Mas também estabelece a distinção entre a propriedade privada e a propriedade destinada ao uso geral.
Não usa terminologia jurídica nem muito menos formulações técnicas, mas divide, claramente, em termos técnicos, o bem comum, a que todos têm direito, e a fortuna de uso particular. Reconhecemos, por isso mesmo, a legitimidade da propriedade privada, obtida à custa do trabalho honesto, sem prejuízo de ninguém, como ensina a Doutrina.
E porventura não tem o direito de usufruir o resultado de seu esforço todo aquele que trabalha e sabe perseverar e economizar para conseguir um padrão de vida melhor? É lógico e humano. Isto não implica aceitar ou defender a transformação de recursos ou bens de uso geral em propriedade particular, para o enriquecimento de uns poucos em desfavor de muitos.
É o que significa, sem tirar nem pôr, a monopolização de um patrimônio coletivo. A propriedade e o capital são, portanto, valores relativos. Se a Doutrina Espírita não é contra o capital em si, coerentemente não apóia a designação depreciativa do dinheiro como o « vil metal ».
O homem é o responsável pelos efeitos do capital, pois o dinheiro é apenas um instrumento que tanto pode servir de peça decisiva de um sistema de corrupção e violência.
O problema é com o ser humano, não é com o dinheiro, pois já sabemos muito bem que as melhores coisas deste mundo, quer materialmente, quer intelectualmente, podem ser usadas para o mal ou para o bem, na medida em que o livre-arbítrio pende para um lado ou para outro.
É o que aprendemos na Doutrina Espírita:
« Se a riqueza houvesse de constituir obstáculo absoluto à salvação dos que a possuem, conforme se poderia inferir de certas palavras de Jesus interpretadas segundo a letra e não segundo o Espírito, Deus, que a concede, teria posto nas mãos de alguns um instrumento de perdição, sem apelação nenhuma, idéia que repugna a razão » (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI).
Coincidentemente – apesar da grande distância no tempo e nas circunstâncias – o presidente Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos, chefe de uma nação capitalista, dizia isto:
« Os capitalistas vorazes serão devorados pelo fogo que eles atearam… O capital é essencial; razoáveis compensações ao capital são essenciais; porém o mau uso dos poderes do capital ou a egoística supervisão de seu emprego precisa ter fim, ou o sistema capitalista se destruirá pelos seus próprios abusos ».
Roosevelt estava então fomentando a política do New Deal, um plano econômico realmente revolucionário. Roosevelt defendia até veementemente a propriedade privada, mas ressalvou logo que a propriedade « não pode ser sujeita à manipulação desumana dos jogadores profissionais da bolsa ou dos conselhos de administração ».
O sentido humano da propriedade, em suma. São idéias que se encontram com as idéias espíritas:
« O que por meio do trabalho honesto, o homem junta, constitui legítima propriedade sua, que ele tem o direito de defender, porque a propriedade que resulta do trabalho é um direito natural, tão sagrado como o de trabalhar e viver » (O Livro dos Espíritos – capítulo XI, parte 3a, nº 882).
Outra coincidência relevante, sobretudo pelo espaço de tempo (90 anos) entre o pensamento espírita e o pensamento de um economista contemporâneo, o que demonstra, mais uma vez, as antecipações da Doutrina Espírita em relação a problemas de nosso tempo:
1947. H. Hansen: « Numa fase de industrialização e urbanização, o indivíduo não pode ordenar a sua vida isoladamente. Só conseguirá resolver os complexos problemas hodiernos mediante esforço conjugado e a ação cooperativa dos seus semelhantes ».
1857. O Livro dos Espíritos: « O homem tem que progredir. Isolado não lhe é isso possível, por não dispor de todas as faculdades. Falta-lhe o contacto com os outros homens. No isolamento ele se embrutece e estiola ».
No fundo, o que resulta de suas conceituações de origens tão diferentes é um apelo de ordem ética, porque contrário ao egoísmo, mas identificado com o espírito de solidariedade, que continua a ser uma força social das mais ponderáveis. »Uma sociedade que se baseia na lei e na justiça de Deus – diz a Doutrina Espírita – deve prover à vida do fraco, sem que haja para ele humilhação ».
É o caso da esmola, que humilha e não resolve os problemas. Mas o assunto provoca reflexões no campo sócio-econômico, o que será objeto de próximo capítulo.
Bibliografia
Autor : Deolindo Amorim
Texto publicado originalmente no livro « O Espiritismo e os Problemas Humanos ».
Edição USE, 1985. Primeira edição em 1948.
Fonte: http://www.espirito.org.br/portal/artigos