Como se vê, a Doutrina Espírita não absorve a idéia de fatalismo como explicação genérica dos desacertos sociais, nem a tese da reencarnação levaria a tanto. O fatalismo social seria a condenação de pessoas ou grupos a uma vida de privações indefinidamente, como se fossem todos marcados pela adversidade inarredável. Não. Nesta ordem de considerações o que a Doutrina afirma nada tem de radical : os males deste mundo são de duas ordens, isto é, os que têm vínculos com o passado, por causa de actos praticados noutra existência, e os que resultam de erros e abusos cometidos no presente. Nem tudo, portanto, se deve lançar na conta do passado.
A incapacidade ou a falta de escrúpulos na gestão administrativa, a negligência na vida pessoal e os desperdícios são responsáveis por muitas crises na sociedade. O cotidiano das ocorrências bem o demonstra. São factos da presente existência. A interpretação unilateral seria muito inconveniente, pois os problemas exigem, antes de tudo, análise conjuntural. Dois fatores são indiscutivelmente relevantes neste passo: a educação e a reforma moral.
Na confluência dos problemas com que nos defrontamos, de um lado e do outro, não seria lógico pôr de lado a interferência de « situações cármicas ». Há criaturas humanas sujeitas ao determinismo de uma existência difícil ou penosa em razão do que fizeram antes, não se sabe onde ou em que época.
Quem, suponhamos, explorou o suor alheio, quem abusou da riqueza ou da autoridade como verdadeiro tirano ou corruptor, certamente vai ter que lutar muito contra a humilhação, as aflições e os embaraços, ainda que trabalhe e estude com o maior afinco para subir pela inteligência e pela tenacidade.
Por mais que insista na tentativa de afastar os empecilhos, fica sempre na planície social, em posição apagada, obrigado a executar serviços inferiores, segundo os valores convencionais do nosso mundo. Mais adiante se nos depara o varredor de rua, um homem que já fora lorde noutra época e, agora, volta à Terra para reeducar-se na humildade, pois impusera humilhação a muita gente quando estava na opulência.
Semelhantemente, não seria um despropósito admitir que antigo e orgulhoso aristocrata, daqueles que faziam pouco caso das pessoas que estivessem abaixo de sua camada social, venha a reencarnar com uma prova que o coloque nas calçadas como engraxate, (1) vivendo à margem das multidões nos grandes centros urbanos. Noutros tempos, tinha criados sobre os quais tripudiava com arrogância e desumanidade.
O fato de engraxar sapato nada tem de deprimente para quem trabalha honestamente, tanto quanto a profissão de gari e outras profissões tidas como das mais modestas não aviltam as mãos honradas.
Se a sociedade precisa de médico para os problemas de saúde pública, também precisa do gari, ao mesmo tempo, porque sem a limpeza da cidade e a remoção dos detritos e entulhos transmissores de vermes e alimentadores de mosquitos os planos sanitários ficam seriamente comprometidos. O cavalheiro elegante, habituado a vestir-se com apuro, não pode fazer « boa figura » em público se não tiver quem lhe engraxe os sapatos no momento necessário. E quem vai fazê-lo?
O titular de um cargo importante? O funcionário de status mais elevado? Claro que não. É o engraxate, que se torna uma figura indispensável naquele momento.
Naturalmente é uma prova para o espírito que reencarna, como se diz, nas « classes baixas » da sociedade e não consegue projetar-se, porque tem débitos pesadíssimos de outras existências. O tipo inteligente ou espertalhão de outrora, muito afeito a espertezas com prejuízo de terceiros, depois de ter tantas e tantas vezes abusado da inteligência para fins inconfessáveis, sem jamais ter sido alcançado pela justiça terrena, não poderá reincorporar-se à mesma sociedade a que pertencera, mas agora reencarnado como servente ou trabalhador explorado, sempre em aperturas financeiras, lesado aqui, sacrificado ali ? É uma contingência admissível no desenrolar do processo reencarnatório.
Bibliografia
Autor : Deolindo Amorim
Texto publicado originalmente no livro « O Espiritismo e os Problemas Humanos ».
Edição USE, 1985. Primeira edição em 1948.
Fonte: http://www.espirito.org.br/portal/artigos
(1) Nota da redacção de Epadis : « Engraxate » palavra do português brasileiro tem o seu sinonimo « engraixador » em português europeu.